A classe média vive distante do povo: geograficamente, economicamente, profissionalmente, ideologicamente.
Não quer dizer que não tenha contato com o povo, pelo contrário, ela pode morar perto, ter um nível de renda não muito distante e estar no mesmo ramo de atuação (em outra posição logicamente...), mas o fato é que existe uma distância, percebida pelo nas roupas, na fala, no tipo de assunto, cor de pele e outros coisas mais ou menos sutis.
A distância faz do povo um desconhecido para a classe média e na “ausência” do povo real surgem idealizações mil sobre quem seria essa entidade: “o povo”. A imaginação da classe média sobre o povo é marcada pelo distanciamento e certo remorso de classe, pois no fundo a classe média sabe que vive bem às custas do povo. Além disso, existe sempre um sentimento de superioridade por parte da classe média.
A classe média é um bicho esquizofrênico, com a mente bipartida, metade esquerda, metade direita. São partes que se encontram dentro de cada indivíduo da classe média; às vezes uma predomina, às vezes outra, na maioria das vezes ambas convivem contraditoriamente dentro da pessoa.
O lado direito é mais simples. Discriminação, humilhações, desprezo total pela cultura popular, subestimação da inteligência alheia, pena de morte para os pobres mal comportados e um pouco de caridade pode resumir a atitude desse lado. Para o lado direito o povo é uma “classe perigosa”, os “feios, sujos e malvados”.
O lado esquerdo é mais complexo, me interessa mais. Nele o remorso de classe é consciente e impulsiona atitudes mais benevolentes para com o povo, ele procura focar nos aspectos positivos e luta contra os “preconceitos” do lado direito. O lado esquerdo é “cidadão”, socialista muitas vezes, embora sejam, sempre, classe média.
Nessa relação classe média / povo, um aspecto chama muito minha atenção: a música; até porque a música é tida e havida como elemento definidor da nossa brasilidade.
O lado esquerdo da classe média venera a música popular. Mas como a classe média é distante do povo real ela venera a idéia de música popular que ela mesma construiu. E como a idéia de povo do lado esquerdo é muito boa, a música popular legítima só pode ser muito boa, deve ser muito boa.
Mas há um grande problema. Quando a classe média olha a música que o povo faz e ouve ela não gosta da maioria das coisas: o forró do “cãozinho dos teclados”, o Calipso, o pagode da periferia e o funk dos bailes são absolutamente abomináveis para a classe média! A classe média condena tudo neles, da musicalidade às letras, da dança ao jeito de se vestir.
Certamente isso não representa todo o gosto musical do povo brasileiro mas devemos reconhecer a expressiva a “popularidade” desses ritmos, independente do gosto musical e do juízo de valor de cada um de nós. E isso é um problema tremendo para a classe média, pois ela idealizou em seu “lado esquerdo” um povo “legítimo” “raiz”, bem distante das perversões do funk, do calipso e do pagode. Eis que então aparece uma solução mágica! Essas “perversões musicais” passam a ser encaradas como “imposições da mídia” e da indústria musical que corromperiam a pureza da verdadeira cultura popular. Assim, de uma tacada só, o povo é inocentado (sujeito inerte...) de culpa por essas músicas repugnantes e a burguesia insaciável é culpada por desgraçar a cultura popular.
Eis que surge então, como um super-herói para salvar o povo, o lado esquerdo da classe média! Sim, essa classe média assumirá a missão histórica de ensinar ao povo qual é a verdadeira cultura popular! Afinal, essa cultura “raiz”, a única cultura popular legítima, precisa ser “resgatada” e devolvida ao povo; e assim, a classe média ataca de Adoniram contra o Só prá contrariar, Luis Gonzaga contra Frank Aguiar, Toni Tornado contra a Gaiola das Popozudas. Desnecessário (ou necessário?) dizer o quão arrogante é essa postura professoral da classe média, postura de classe dominante.
Se repararmos bem, foi a classe média quem inventou a Música Popular Brasileira, M.P.B., uma sigla, uma marca que carimba o que é digno ou não de ser chamado de popular. O engraçado é que os autores eram (e são ainda!) quase sempre da classe média, o público é quase sempre da classe média, os lugares onde se apresentam de classe média. Seria a música popular? Mesmo sem músicos e ouvintes do povo? Eles insistem em se chamar de Música Popular Brasileira! Ao menos a musicalidade é legitimamente popular? Pode ter certa inspiração na raiz popular, mas é algo um tanto diferente.
Lembro dos relatos de Zé Ketti e Cartola sobre os primeiros contatos com gente da Bossa Nova. Longas viagens de ônibus, o estranhamento com a zona sul do Rio, Tom Jobim e Vinicius mandando algum funcionário comprar cachaça e cerveja: só bebiam whisky, tocavam jazz americano e queriam misturar um pouco de samba na coisa. Relato exemplar que explica um pouco essa coisa que virou a “M.P.B.”, um rótulo que serve de barricada contra as perversões populares que insistem em se reproduzir contrariando os cânones do que deve ser o popular.
É curioso como quase tudo que a classe média admira na cultura popular pertence ao passado, já repararam nisso? São sempre culturas, tradições e músicas do passado, quase extintas, que se tornaram objeto de curiosidade, de estudo.
Talvez exista algum estudo (e se não há é uma boa sugestão) sobre a atitude da classe média com a música popular nas diferentes épocas. Pelo que sei a classe média sempre repudiou a cultura popular que era contemporânea, e sempre passou a admirá-la depois de morta, “empalhada” e devidamente absorvida tempos depois.
Os comentários da classe média sobre o samba nas primeiras décadas do século invariavelmente condenavam a “malícia” e a “sensualidade”. “Formosa”, palavra que ouvimos em vários sambas do passado, hoje parece uma termo até requintado. O passado tem esse poder de envernizar de requinte uma palavra que “traduzida” para hoje seria algo como - Gostosa. Enfim, há uma infinidade de sambas e forrós que deveriam soar tão sexualmente agressivos aos ouvidos puristas daquela época como alguns funks de hoje em dia que chocam o lado esquerdo da nossa classe média, tão ciosa das tradições. Seriam eles neo-reacionários? Dá o que pensar...
Um dos resultados da cultura popular da classe média é a existência de diversos barzinhos e botecos que tocam o que se considera a legítima música popular, inventaram a algum tempo o termo “samba de raiz”, termo que não diz nada sobre o estilo de samba, apenas que é “de raiz”, “das antigas”. O curioso é que nesses lugares o povo real comparece quase sempre minoria ou como músico. O preço é meio salgado, enfim, o lugar ´”é de bacana”, embora toque a verdadeira música popular, a tal “de raiz”, para a classe média obviamente.
O problema do lado esquerdo da classe média é que seu ideal de povo não pode ser maculado, o povo deve ser bom. É como se ele tivesse medo de reprovar algo no povo e suscitar seu lado direito, reacionário.
Simbolicamente a classe média mata boa parte do povo real, que gosta de “podreiras”, esse povo não tem direito à cultura, tudo para que o povo ideal seja puro, seja raiz, um povo imaginário que a classe média produz para ela mesma cultue esses valores e se sinta menos burguesa.
A parte direita da classe média quer a pena de morte, quer o zé povinho que ousou roubar e sair de seu lugar morto. A parte esquerda da classe média exige do povo uma “cultura popular” que não existe mais, que só existe num povo do passado, morto e enterrado.
É como se dissessem: - Tirem daqui essa música pervertida e massificada pela mídia! Eu quero o povo morto e ideal, o povo legitimamente popular! Eu tenho medo e nojo desse povo real, degradado pelo funk, pelo pagode, pelo forró! Se esse for o povo, talvez o lado direito esteja certo, ele é mesmo deplorável...
Ironicamente uma sentença pode unir estas duas partes da esquizofrênica classe média: “povo bom é povo morto!”
PS: A idéia do texto é refletir sobre o tema, pessoalmente gosto tanto de coisas que podem ser enquadradas como "raiz" - sem precisar de justificativas ideológicas - e de coisas que podem ser enquadradas como "podreiras" - sem a menor vergonha na cara.
PS: A idéia do texto é refletir sobre o tema, pessoalmente gosto tanto de coisas que podem ser enquadradas como "raiz" - sem precisar de justificativas ideológicas - e de coisas que podem ser enquadradas como "podreiras" - sem a menor vergonha na cara.
texto muito bom, mas faltou dizer que uma parcela grande da classe média adora funk, rap e pagode. e não esta nem ai se esses ritmos são considerado lixo pelo seus pares mais "sofisticado". Nesse sentido a classe média é o objeto de idealização do autor.
ResponderEliminarEduardo
SHow o texto.. Um tapa na cara...
ResponderEliminarA música Popular Brasileira nem é tão popular assim....
É um texto agressivo e, se for pensar, muita gente se encaixa nisso. Incluindo eu.
ResponderEliminarParabéns, adorei o texto e me serviu como uma bronca na hora de mudar algumas das minhas convicções.
Fantástico o texto. Como o Igor, sinto-me "acusada" por ele - e é merecida a acusação! Fantástico quando vc diz que a música popular antiga é venerada: afinal, povo como peça de museu tá tudo bem, néam?
ResponderEliminarEnfim, parabéns!
E ninguém entende quando digo que funk é o novo samba. Sensacional! Bota tapa na cara nisso.
ResponderEliminarSicilio: obrigado por sua opinião mas achei o texto generalista. Discordo de várias partes, concordo com algumas muito superficialmente. Bons costumes devem sim ser cultivados e isso sim é o que separa as pessoas, não a classe social. Conheço pessoas que teriam todos os requisitos necessários para se enquadrar na classe média tanto repudiada pelos ideólogos, pessoas estanque gostam de músicas realmente populares como funk e forró.
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ResponderEliminarO texto é bem interessante e convida à reflexão. Existe, sem dúvida, um elitismo enrustido em setores significativos da classe média... Porém, não se pode menosprezar a capacidade que tem a indústria cultural de privilegiar certas modalidades em detrimento da verdadeira liberdade de criação artística. O próprio rótulo MPB é uma criação de mercado, um nicho de mercado.
Alíás, todos os nichos são artificiais. Conheço a capacidade de um grande artista quando ele se mete a transpor limites, pular de uma estante pra outra da prateleira da loja de discos. Como já tantas vezes fez o Gil. Em que prateleira colocar "São João Vivo", este disco extraordinário, se não for na de forró? Mas, vai que dois anos depois ele vem de Kaya'n Gandaia, que só pode ter sentido na estante de reggae...
Agora, só pra aceitar a provocação, você não acha que os tais "barzinhos e botecos" não se constituem em espaços privilegiados para que novas sonoridades tenham sua eficácia testada em plateias relativamente pequenas, antes de ganhar mundo?