Dias antes da eleição encontrei uma turma de amigos e entre eles estava um que eu não via há tempos devido as atribulações da vida. Anos atrás participamos juntos de organização de esquerda e militamos muito próximos.
Depois de algumas cervejas e de papo rolando o assunto passou pela política e pelas eleições. Quase todos da mesa, éramos meia dúzia, se consideram de esquerda e todos da mesa, sem exceção iriam votar na Dilma. Esse amigo riu e confessou que temia ser massacrado quando nos informasse sobre sua pretensão de votar na Dilma.
Anos atrás votávamos nulo, defendíamos um processo de mudança profundo que se faria por fora da via eleitoral e estávamos de fato engajados até a alma nessa militância. Votar na Dilma e no PT seria absurdo naquela época. Afinal havia outro caminho em construção e ele parecia promissor, mesmo com todos os problemas.
Éramos parte daqueles que antes de 2002 pensávamos que a eleição de Lula - mesmo que votássemos nulo e criticássemos as limitações do PT - era algo positivo pois serviria para “queimar um cartucho”, frustrar expectativas populares de mudança, enfim habilitar novas opções de esquerda. E nós, claro, estaríamos inscritos, à nossa maneira, para oferecer um novo caminho às pessoas.
Era mais ou menos isso que pensavam o PSTU, os que fundaram o PSOL, os que tentaram construir (e ainda tentam...) novas alternativas ao esquema PT/CUT.
Passados 8 anos de governo Lula as decepções populares não vieram, ou pelo menos não vieram na intensidade que se esperava. As massas não correram para a esquerda, nos deixaram falando sozinhos. A tal “esquerda radical” e os movimentos onde atuam estão, salvo raras exceções, em crise, estagnadas, rachando, regredindo; seja eleitoralmente, seja socialmente.
O problema me parece muito simples: Lula e o governo petista não decepcionaram a massa popular, pelo contrário, a população mais pobre percebe uma melhoria significativa em suas vidas e isso se reflete na absurda aprovação do governo e de Lula, bateu na casa dos 85%, segundo os especialistas nesse tipo de pesquisa é algo inédito. Em terra de cego quem tem olho é rei...
Essa esquerda radical, da qual eu e os amigos reunidos no bar fazíamos parte (alguns ainda fazem, outros fazem em pensamento...ou gostam de se imaginar assim...) tinha entre suas convicções a idéia de que o PT e o PSDB não tinham diferenças relevantes. PSTU, PSOL, PCO, PCB, enfim a esquerda que disputou essa eleição, ainda defende isso, o que talvez explique seu pífio desempenho eleitoral e influência social.
Quando dizíamos que as diferenças eram irrelevantes havia um termo oculto na frase: irrelevante perto do que seriam verdadeiras mudanças “estruturais”, “profundas”, e uma série de outros termos que se usam para indicar mudanças próximas de uma ruptura radical com a ordem capitalista.
Traduzindo: as mudanças reais e objetivas na vida das pessoas são “ilusões”, “abstrações” comparadas a algo que só existe em nossos objetivos escritos no papel e nos desejos e sonhos de nossas mentes. Enfim, a realidade material seria irrelevante e nossas idéias e utopias sim seriam representativas da verdadeira realidade oculta pelas aparências. E isso passava e ainda passa por análise materialista para muitos.
O povo estaria enganado e confundido pelas aparências falsas de um salário que duplicou, de um desemprego que caiu para menos de 1/3, por um estômago melhor abastecido, pela casa própria. Quantas ilusões.
Esse raciocínio é facilitado pelo fato de boa parte dos militantes dessa esquerda radical ser oriundos da classe média e não tem como sentir individualmente a experiência de mudança objetiva que representou o governo Lula.
Essa eleição apresentou uma grande novidade ainda mal dimensionada. O caráter de classe da votação de Serra e Dilma. Em qualquer região que se tome como amostra os mais pobres votaram em Dilma e os mais ricos em Serra, ainda não encontrei exceções. Vejam no link abaixo a votação por região em São Paulo: uma periferia “vermelha” contrasta com os bairros ricos “azuis”:
Nem mesmo nas duas eleições de Lula, com todo simbolismo operário e classista, os pobres votaram tanto no PT. Por outro lado, a classe média mais ética deixou de votar no PT assustada com sua corrupção pragmética, migrou para o PSDB, para Marina, e até para o PSOL. As maiores votações dos “socialistas” do PSOL são nas regiões de classe média e não nos bairros operários ou de periferia.
Essa configuração é a prova cabal de que uma mudança objetiva foi sentida pela população e traduzida politicamente no voto. Chamemos essa mudança como quisermos: migalhas, assistencialismo, bolsa-esmola, pouco importa: o fato é que foi relevante o suficiente para gerar um novo cenário.
E na reta final da eleição um novo fato veio colocar a cereja no bolo. O desespero do PSDB levou Serra a uma opção inteligente e reacionária. Como quebrar o “classismo” do voto? Como mudar o voto de um pobre que sente que a vida melhorou e vota em Dilma? Mudando o foco e mobilizando o que há de mais atrasado no senso-comum popular: a bosta da religião. Foi o jeito de ganhar voto de crentes e católicos, fazendo o debate regredir à Idade Média. Foi nojento, compreensível; mas ao mesmo tempo foi um reconhecimento de que era preciso mudar o terreno da luta eleitoral, fugir de um campo onde o PT jamais perderia.
Essa guinada à direita do PSDB teve um efeito colateral inesperado. Muitas pessoas de esquerda, que odeiam Dilma e o PT, fazendo uma crítica à esquerda, começaram a aderir espontaneamente no voto em Dilma; porque a PSDB mostrou que as diferenças não eram tão “irrelevantes” assim. Não foi o PT quem se mexeu à esquerda no segundo turno, foi o PSDB que se moveu à direita e com isso trouxe setores da esquerda para Dilma, sem que ela nem mesmo os chamasse. Diversos setores de esquerda terminaram, ainda que tímida e envergonhadamente, apoiando Dilma sem que negociassem nada, sem que o PT acenasse com nenhum tipo de compromisso programático mínimo à esquerda. Vieram sem serem chamados diante do perigo potencial de Serra virar o jogo. Por fim, reconheceram que a realidade era relevante.
Acho que isso explica um pouco a meia dúzia de amigos no bar votando em Dilma. Não há empolgação, não há ilusão, não há adesão militante. O que há é um reconhecimento da realidade, de mudanças que foram sim significativas, com todas as limitações “estruturais” que existam.
Pior do que isso, é o reconhecimento que pelo menos nesse momento histórico, a esquerda falhou em construir uma alternativa real. Lógico que há enormes esforços e muita luta sincera, mas o problema é sempre o tamanho disso, o poder de intervenção social. E nesse momento o peso social é quase insignificante. É triste, é duro, mas reconheçamos humildemente, é a verdade. Melhor admitir a realidade do que criar uma bolha de especulações esquerdistas e repetir aos quatro ventos que a luta segue muito bem, avança.
A realidade, a estúpida realidade, é muita justa, ela nos ignora na mesma medida que nós a ignoramos. Não é ela a irrelevante, somos nós e nossas tolas ilusões os irrelevantes.