24 de agosto de 2010

Pela bola sete

Aqui vai uma das boas crônicas do santista, jabaquarense e xisnoveano Plínio Marcos

O Bereco era do devagar. Não queria nada com o batente. Seu negócio era sinuca. E nisso ele era cobra. De taco na mão, fazia embaixada. Conhecia os trambiques do jogo e sabia como entrutar o parceiro. Então, estava sempre com a bufunfa em cima. Sabe como é o lance. Sempre tem um panaca pra desconhecer o nome do mandarim. E o Bereco ajudava. Se vestia como um Zé Mané qualquer. Neca de beca legal. Isso espanta o loque. O babado era se fazer de besta. Tirar onda de operário trouxa, desses que dão um duro do cacete de sol a sol, se forram de prato feito e na folga vão fazer marola em boteco.

Daí, sempre tem um malandrinho pra tomar os pixulés do otário. Se fazer passar por coió era o grande trambique do Bereco. Com essas e outras, ele engrupia até muito vagau escolado. Até no Bar Seleto de São Vicente, ponto certo dos grandes tacos do mundo, o Bereco deu esse deschavo. E grudou. Pensaram que ele era pão-ganho e ele tomou o sonante dos pinta. E assim o Bereco ia remando seu barco em maré mansa. Só ganhando. Um pato atrás do outro era depenado. Sem dó. Que, nas paqueras da vida, é cada um pra si. Até que um dia aconteceu um esquinapo. Era fim de mês. Dia de pagamento da Refinaria de Petróleo. O Bereco, que estava por dentro, se picou pro Cubatão. Se plantou num salão dos bordejos da refinaria e ficou na moita.

Logo foi baixando a freguesia. Tudo de capacete de lata. A patota estava contentona, de envelope no chorro. E o Bereco só espiando o lance. De vez em quando, tirava um paco de nota pra pagar uma Coca-Cola. Era a milonga. Logo, um capacete de lata mais afobado se assanhou com o dinheiro do majura. Sentiu a muquinha pega e quis tomar. Mediu o Bereco e foi no chaveco do pinta. O capacete de lata tinha um joguinho enganador. Desses que funcionam em mesa de sindicato. Mas levou fé em si e nenhuma no Bereco.

Encarnou no moço: — Como é, parceiro? Quer fazer um joguinho? O Bereco não deu pala: — Não jogo nada. O capacete de lata cercou: — A leite de pato. O Bereco deixou andar: — Se é brinquedo, vamos lá. E começou o jogo. O Bereco sentiu o parceiro e tirou de letra. O capacete não sabia nada. O Bereco deu o engano. Os primeiros dez mirréis, os segundos e os terceiros, o Bereco empurrou pro trouxa. E se fez de bronqueado. Partiu pros vinte, pros cinqüenta e pros cem mil. O capacete de lata estava se deitando. Era seu bilhete premiado. Com o dinheiro que ganhou do Bereco e o seu ordenado, já tinha um milheiro no porão. Daí, o Bereco selou: — Ou tudo ou nada.

O capacete de lata nem balançou: — Um milhão na caçapa. Todo mundo de botuca ligada na mesa. O capacete de lata saiu pela cinco. Errou. O Bereco se tocou que o xereta estava nervoso. Teve que maneirar. Cozinhar o galo. Senão, ia ficar escrachado o perereco. Errou na cinco, que estava cai, não cai. E o joguinho ficou de duas muquiranas. Só na bola da mesa. O Bereco não embocava. Só colhia as mancadas do capacete de lata. Se o bruto metia uma três, o Bereco fingia que era sem querer e deixava uma sinuca de bico pro inimigo. E na catimba do Bereco e no virador do capacete de lata, o jogo foi comprido paca. Os sapos nem chiavam. Seguravam as pontas.

Era tudo torcedor do capacete de lata. Trabalhadores da refinaria. Mas o Bereco nem estava aí. Já contava com o dinheiro da caçapa. Aí chegaram na bola sete. Só a sete estava na mesa. E o jogo estava por ela. O Bereco, folgado, muito à vontade, encostou a negra na parede. O capacete de lata tremia, suava. Estava com o motor batendo acelerado. Fez mira. Começou a pensar que tinha quatro filhos no seu chatô, aluguel de casa, rango, escola, remédio e os cambaus. Pensou no que ia dizer pra mulher. Com a cabeça cheia de minhocas, deu na cara da bola. Uma chapada. A negra rolou pra um lado, a branca, pra outro. O capacete de lata sentiu um alívio. Pelo menos acertou na bola.

Mas o recreio durou pouco. Quando as bolas pararam, a sete estava na boca da botija. Pedindo pra cair. E a branca, no meio da mesa. Ninguém, por mais cego que fosse, errava aquela bola. O Bereco sorriu. Deu a volta na mesa devagar. Bem devagarinho. Enrustido, sem dar bandeira, ia gozando as fuças dos otários. O capacete de lata só faltava abrir o bué. Deu a volta e ficou atrás da caçapa em que a bola ia cair. O Bereco deu uma dica de leve: — Vai secar? O capacete de lata quis falar, mas não deu. Se engasgou. O Bereco não se flagrou no olhar do panaca. Se tivesse visto as bolas de sangue nas botucas do capacete de lata, ia ficar cabreiro. Não viu e fez a presepada. Passou giz no taco, com calma. Se ajeitou na mesa, com calma. Aí, levantou a mira.

Viu a bola branca, a sete, a caçapa, atrás da caçapa um revólver quarenta e cinco e, atrás do revólver, o capacete de lata. O Bereco quis saber: — Que é isso, meu compadre? O capacete de lata espumou, babou e resmungou: — Se meter essa bola, eu te mato. O Bereco viu logo que era jura. Se fechou em copas. Deu na bola de esguelha, o taco espirrou. Raspou na sete e as duas ficaram na berba da caçapa. Coladas. O Bereco fingiu que não havia nada. Deu a treta: — Ficou pra você, compadre. O capacete de lata guardou o revólver, a raiva e tudo. Foi de cabeça. Deu no taco e bimba. A branca e a negra mergulharam juntas. O Bereco ficou só olhando. As lágrimas correram dos olhos do capacete de lata. Estava tão por baixo que não dava pra pegar a arma e aprontar o salseiro. Só deu um lamento: — Tenho quatro bacuris. O Bereco fez que não escutou.

Recolheu a grana e saiu de fininho. O capacete de lata saiu logo atrás. Ninguém se mexeu. Passou um tempo e veio o estouro. Meio mundo foi ver as rebarbas. No meio da rua, o capacete de lata estava estarrado. Tinha o revólver na mão e uma bala na orelha. Se acabou. O Bereco só teve pena de nunca mais poder dar grupo em trouxa do Cubatão. Perdeu um grande pesqueiro.

7 de agosto de 2010

Uma Brahma! Bem geladinha!


Ele não era mendigo e muito menos um dos bêbados e malucos que andavam pelo Saboó. Era um biscateiro como se dizia, vivia de bicos, ora consertando um encanamento, ora ajudando numa obra, sempre pegando um trabalho aqui e outro ali, sempre sem paradeiro profissional. A vida toda fora assim, preferia isso a ter emprego fixo, trabalhar todo dia, ter patrão ...

Pagava um preço por isso. E sabia muito bem disso. Ás vezes enchia o bolso numa semana e antes de chegar o domingo o dinheiro lhe escapava entre os dedos, juntar era raro, comprar algo para garantir o futuro mais ainda. Mas tinha sua casa, sem escritura, sem nenhum papel, mas todos sabiam que era dele e não havia conta de aluguel, luz ou água para pagar.

Apesar da pobreza nunca dispensou sua cerveja. Encostava no balcão e o braço já parecia acostumado àquele movimento de apoio, devia haver uma espécie de calo sob o braço do Xaíco, tal o número de vezes em que aquele movimento foi repetido. Sempre pedia Brahma, nunca marca inferior, nem superior. Acostumou-se a isso. E acrescentava ao dono do boteco: - Bem geladinha! e devolvia bravo se estivesse mais ou menos.

Vivia assim desde moleque. Estava com 43. Sem mulher, sem saber direito onde viviam os 4 filhos que fizera pelo mundo. O trabalho já não aparecia como antes. Anos atrás chegava a fugir dele, mentia dizendo que tinha pego outros serviços e passava dias até semana toda curtindo praia vez por outra. Mas agora a coisa era outra, o trabalho já não aparecia e ele não tinha muito ânimo de procurá-lo, nunca teve e já estava velho demais para mudar, era o que dizia.

Sem trabalho comia um dia na casa de um, outro dia na casa de outro. Não tinha gastos. Mas faltava o da cerveja. Mas... – Dinheiro... dinheiro não tem ... era o que costumava dizer.

Luizito como sempre fez parava nos botecos, encostava no balcão e com a mesma naturalidade de sempre pedia – Uma Brahma! Sempre acrescentando ... Bem geladinha!

A Brahma vinha, bem geladinha, ele bebia o primeiro gole com aquele prazer que somente os bons bebedores conhecem, aquele prazer do primeiro gole em dia de calor. Bebia uma, às vezes duas ou três, mas não passava disso. Depois saia caminhando devagar.

Não pagava mais.

Das primeiras vezes os donos de boteco da área pensaram que era simples esquecimento, mas não gostaram nem um pouco. E a coisa seguiu. Xaíco chegava e falava – Uma Brahma! Bem geladinha!
A Brahma chegava, ele bebia e ia saindo, sem mais nem menos, nem pedia prá pendeurar, como se beber umas cervejas fosse uma espécie de direito inerente ao ser humano, devia constar na Declaração Universal dos Direitos do Homem...

Os donos de boteco da área começaram a se enfezar - E aí Xaíco! Não vai pagar? Ele olhava e respondia tranqüilamente – Dinheiro não tem...e saía caminhando no seu passo de sempre. Um ou outro perguntava se ele queria pendurar, mas Xaíco só respondia – Não adianta porque... dinheiro não tem...

Isso seguiu por cerca 4 meses. Xaíco revezava os botecos. Cada dia num diferente, mas não deixava de ir a cada um do bairro pelo menos uma vez na semana e continuava pedindo – Uma Brahma! Bem geladinha!

Um dia Xaíco sumiu. Acharam o corpo dele peneirado por 11 balas de uma pistola. Diz a lenda que antes de morrer não suplicou, não correu e nem prometeu pagar. Pediu que o deixasse realizar seu último desejo – Uma Brahma! Bem geladinha! E avisou antes desta vez - Dinheiro não tem ...

O sensível homem que iria realizar o serviço esperou pacientemente que ele bebesse toda a garrafa. Depois conferiu a arma, destravou e soltou azeitona. Saiu tranquilo, pensando no que iria receber e e na Brahma – bem geladinha! - que iria tomar, ali perto mesmo, mas para ele agora – Dinheiro tem sim...

Dizem que quando o corpo de Xaíco chegou no IML, logo ali no Saboó, atrás da favela do Pantanal, um dos empregados gritou - Chegou mais um presunto! Outro, que conhecia o Xaíco respondeu: - Bem geladinho? E os dois caíram na gargalhada.

OBS: Essa história quem me contou foi um grande camarada, morador da área, que assim como Xaíco, encerrou expediente na terra.