31 de outubro de 2010

O resultado eleitoral ou a realidade não é irrelevante!



Dias antes da eleição encontrei uma turma de amigos e entre eles estava um que eu não via há tempos devido as atribulações da vida. Anos atrás participamos juntos de organização de esquerda e militamos muito próximos.

Depois de algumas cervejas e de papo rolando o assunto passou pela política e pelas eleições. Quase todos da mesa, éramos meia dúzia, se consideram de esquerda e todos da mesa, sem exceção iriam votar na Dilma. Esse amigo riu e confessou que temia ser massacrado quando nos informasse sobre sua pretensão de votar na Dilma.

Anos atrás votávamos nulo, defendíamos um processo de mudança profundo que se faria por fora da via eleitoral e estávamos de fato engajados até a alma nessa militância. Votar na Dilma e no PT seria absurdo naquela época. Afinal havia outro caminho em construção e ele parecia promissor, mesmo com todos os problemas.

Éramos parte daqueles que antes de 2002 pensávamos que a eleição de Lula - mesmo que votássemos nulo e criticássemos as limitações do PT - era algo positivo pois serviria para “queimar um cartucho”, frustrar expectativas populares de mudança, enfim habilitar novas opções de esquerda. E nós, claro, estaríamos inscritos, à nossa maneira, para oferecer um novo caminho às pessoas.

Era mais ou menos isso que pensavam o PSTU, os que fundaram o PSOL, os que tentaram construir (e ainda tentam...) novas alternativas ao esquema PT/CUT.

Passados 8 anos de governo Lula as decepções populares não vieram, ou pelo menos não vieram na intensidade que se esperava. As massas não correram para a esquerda, nos deixaram falando sozinhos. A tal “esquerda radical” e os movimentos onde atuam estão, salvo raras exceções, em crise, estagnadas, rachando, regredindo; seja eleitoralmente, seja socialmente.

O problema me parece muito simples: Lula e o governo petista não decepcionaram a massa popular, pelo contrário, a população mais pobre percebe uma melhoria significativa em suas vidas e isso se reflete na absurda aprovação do governo e de Lula, bateu na casa dos 85%, segundo os especialistas nesse tipo de pesquisa é algo inédito. Em terra de cego quem tem olho é rei...

Essa esquerda radical, da qual eu e os amigos reunidos no bar fazíamos parte (alguns ainda fazem, outros fazem em pensamento...ou gostam de se imaginar assim...) tinha entre suas convicções a idéia de que o PT e o PSDB não tinham diferenças relevantes. PSTU, PSOL, PCO, PCB, enfim a esquerda que disputou essa eleição, ainda defende isso, o que talvez explique seu pífio desempenho eleitoral e influência social.

Quando dizíamos que as diferenças eram irrelevantes havia um termo oculto na frase: irrelevante perto do que seriam verdadeiras mudanças “estruturais”, “profundas”, e uma série de outros termos que se usam para indicar mudanças próximas de uma ruptura radical com a ordem capitalista.

Traduzindo: as mudanças reais e objetivas na vida das pessoas são “ilusões”, “abstrações” comparadas a algo que só existe em nossos objetivos escritos no papel e nos desejos e sonhos de nossas mentes. Enfim, a realidade material seria irrelevante e nossas idéias e utopias sim seriam representativas da verdadeira realidade oculta pelas aparências. E isso passava e ainda passa por análise materialista para muitos.

O povo estaria enganado e confundido pelas aparências falsas de um salário que duplicou, de um desemprego que caiu para menos de 1/3,  por um estômago melhor abastecido, pela casa própria. Quantas ilusões.

Esse raciocínio é facilitado pelo fato de boa parte dos militantes dessa esquerda radical ser oriundos da classe média e não tem como sentir individualmente a experiência de mudança objetiva que representou o governo Lula.

Essa eleição apresentou uma grande novidade ainda mal dimensionada. O caráter de classe da votação de Serra e Dilma. Em qualquer região que se tome como amostra os mais pobres votaram em Dilma e os mais ricos em Serra, ainda não encontrei exceções. Vejam no link abaixo a votação por região em São Paulo: uma periferia “vermelha” contrasta com os bairros ricos “azuis”:


Nem mesmo nas duas eleições de Lula, com todo simbolismo operário e classista, os pobres votaram tanto no PT. Por outro lado, a classe média mais ética deixou de votar no PT assustada com sua corrupção pragmética, migrou para o PSDB, para Marina, e até para o PSOL. As maiores votações dos “socialistas” do PSOL são nas regiões de classe média e não nos bairros operários ou de periferia.

Essa configuração é a prova cabal de que uma mudança objetiva foi sentida pela população e traduzida politicamente no voto. Chamemos essa mudança como quisermos: migalhas, assistencialismo, bolsa-esmola, pouco importa: o fato é que foi relevante o suficiente para gerar um novo cenário.

E na reta final da eleição um novo fato veio colocar a cereja no bolo. O desespero do PSDB levou Serra a uma opção inteligente e reacionária. Como quebrar o “classismo” do voto? Como mudar o voto de um pobre que sente que a vida melhorou e vota em Dilma? Mudando o foco e mobilizando o que há de mais atrasado no senso-comum popular: a bosta da religião. Foi o jeito de ganhar voto de crentes e católicos, fazendo o debate regredir à Idade Média. Foi nojento, compreensível; mas ao mesmo tempo foi um reconhecimento de que era preciso mudar o terreno da luta eleitoral, fugir de um campo onde o PT jamais perderia.

Essa guinada à direita do PSDB teve um efeito colateral inesperado. Muitas pessoas de esquerda, que odeiam Dilma e o PT, fazendo uma crítica à esquerda, começaram a aderir espontaneamente no voto em Dilma; porque a PSDB mostrou que as diferenças não eram tão “irrelevantes” assim. Não foi o PT quem se mexeu à esquerda no segundo turno, foi o PSDB que se moveu à direita e com isso trouxe setores da esquerda para Dilma, sem que ela nem mesmo os chamasse. Diversos setores de esquerda terminaram, ainda que tímida e envergonhadamente, apoiando Dilma sem que negociassem nada, sem que o PT acenasse com nenhum tipo de compromisso programático mínimo à esquerda. Vieram sem serem chamados diante do perigo potencial de Serra virar o jogo. Por fim, reconheceram que a realidade era relevante.

Acho que isso explica um pouco a meia dúzia de amigos no bar votando em Dilma. Não há empolgação, não há ilusão, não há adesão militante. O que há é um reconhecimento da realidade, de mudanças que foram sim significativas, com todas as limitações “estruturais” que existam.

Pior do que isso, é o reconhecimento que pelo menos nesse momento histórico, a esquerda falhou em construir uma alternativa real. Lógico que há enormes esforços e muita luta sincera, mas o problema é sempre o tamanho disso, o poder de intervenção social. E nesse momento o peso social é quase insignificante. É triste, é duro, mas reconheçamos humildemente, é a verdade. Melhor admitir a realidade do que criar uma bolha de especulações esquerdistas e repetir aos quatro ventos que a luta segue muito bem, avança.

A realidade, a estúpida realidade, é muita justa, ela nos ignora na mesma medida que nós a ignoramos. Não é ela a irrelevante, somos nós e nossas tolas ilusões os irrelevantes.

4 de outubro de 2010

Números da eleição prá se pensar: abstenção e o tamanho da “esquerda”


Um em cada quatro eleitores não votou em ninguém

Se somarmos voto nulo, voto em branco e abstenções chega-se a cifra de 25,19% de eleitores que não escolheram ninguém. O maior percentual foi o de abstenções, mais de 18%. Vejam os dados:

·         eleitorado apurado 135.802.735 (100,00%)
·         eleitorado não apurado 1.698 (0,00%)
·         total 111.192.908
·         votos válidos 101.589.387 (74,81%)
·         votos brancos 3.479.332 (2,56%)
·         votos nulos 6.124.189 (4,51%)
·         abstenção 24.609.827 (18,12%)

Talvez esteja aí parte da explicação do segundo turno. Se metade dos que se abstiveram tivesse votado, seguindo a mesma distribuição dos votos, Dilma estaria eleita. Mas provavelmente seus eleitores, apesar de serem simpáticos a candidatura, não se empolgaram o suficiente para ir até a urna.

Abstenção e Voto Nulo

Para os que defendem o voto nulo a abstenção também sugere outra idéia, óbvia. O voto nulo foi pro espaço com advento da urna eletrônica. Acabou a liberdade de escrever o que se bem entende num pedaço de papel. Quem quer votar nulo hoje em dia tem que ter certos conhecimentos e realizar um procedimento totalmente sem graça e protocolar. Com a urna eletrônica boa parte da população sente vergonha de votar nulo, a pessoa se sente burra, como se “errasse na máquina”.

Por fim, os partidos perceberam que podem capitalizar o voto nulo com os Tiriricas da vida. Ou ele não é a encarnação do Cacareco, do voto de protesto, da crítica à “palhaçada”?. E assim, o sistema minimizou, tornou sem graça e capitalizou o voto nulo. O “voto nulo” em Tiririca elegeu mais uns 3 ou 4 pilantras nada nulos.

Para quem deseja protestar talvez o melhor caminho seja a simples abstenção: dá menos trabalho e depois basta você ir até o cartório eleitoral e acertar as coisas, a multa é irrisória (pelo menos até agora...tomara que eles não abram o olho...se é que já não abriram...) e você pode ir até dois meses depois sem nenhuma fila. Eles te reabilitam e legalizam, precisam de você de novo na próxima eleição.

Uma esquerda minguando...

Falo de PSOL, PSTU, PCB e PCO. PT e PV não são esquerda, são apenas o que existe, fala sério!

Tudo bem que prá mudar um país não devemos seguir critérios eleitorais, não é preciso 50% mais um prá mudar as coisas. E aí velhos argumentos como – Quem muda o mundo foram sempre as minorias! podem confortar a esquerda.

Mas sejamos francos: não é a maioria que muda, mas também não são seitas quase invisíveis. Vejamos os números finais para Presidente:

DILMA
PT
47.649.079
46,91%
46,91
JOSÉ SERRA
PSDB
33.130.514
32,61%
32,61
MARINA SILVA
PV
19.636.000
19,33%
19,33
PLÍNIO
PSOL
886.800
0,87%
0,87
EYMAEL
PSDC
89.346
0,09%
0,09
ZÉ MARIA
PSTU
84.609
0,08%
0,08
LEVY FIDELIX
PRTB
57.958
0,06%
0,06
IVAN PINHEIRO
PCB
39.134
0,04%
0,04
RUI COSTA PIMENTA
PCO
12.206
0,01%
0,01

O PSOL ficou abaixo de 0,9%. Fez uma campanha sincera, mas o resultado é desalentador. Heloísa Helena teve cerca de 6% na última eleição e a maioria de seus votos migrou prá Serra no segundo turno. Eram os votos “éticos” da classe média. Nessa eleição eles foram direto prá Marina e Serra e deixaram Plínio como o “velhinho engraçado”, porém inofensivo.

PSOL, PSTU e PCB nem mesmo conseguiram sair numa mesma chapa consumidos por disputas “internas” (embora pelo tamanho dos partidos não exista muito “dentro” nesse caso...) E o PCO... bem o PCO ...o que é o PCO...uma piada pronta saída de um museu de arte do “realismo socialista”.

O resultado é que o PSTU perdeu do Eymael, O PCB e PCO perderam do “aerotrem” do Levy Fidelix!

A votação do PSTU, 0,08%, não elege nem deputado; a votação do PCB, 0,04%, e do PCO, 0,01%, nem vereador; e a esquerda toda mal ultrapassou 1 milhão de votos. Perdeu dos brancos perdeu dos nulos. É uma esquerda menos que branca, menos que nula. E o pior é que isso é sério.

Não se trata de um “erro tático”, do tipo – Se saíssemos juntos seria diferente! Porque não mudaria grande coisa. O debate entre os candidatos da esquerda reuniu menos de 50 pessoas, e metade deveria ser de jornalistas.

Muitos vão resmungar e dizer que eu estou medindo as coisas por critérios eleitorais-burgueses, como se houvesse uma grande força social e política em todos esses partidos que não pôde se revelar nas eleições. Façam o que quiserem, sigam tapando o sol com a peneira.

Há algo de podre nesse reino da Dinamarca que não vai parar de feder enquanto não for encarado. Quem tem medo de mexer na podridão que tape o nariz e siga como está, o odor só piora com o tempo e você se torna parte dele cada vez mais.

Por hoje é isso, a maldita frieza dos números numa segunda feira nublada e quase chuvosa.

23 de setembro de 2010

A "liberdade de expressão" e a mídia

Um breve comentário sobre o tema, que se misturou ao debate eleitoral.

A mídia está fazendo uma enorme gritaria cada vez que se fala, muito timidamente, em controle da sociedade ou se relembra que a TVs e Rádios são concessões públicas.

Lula foi extremamente tímido sobre a questão da mídia ao longos dos últimos 8 anos, talvez pensasse sem mexer com a mídia teria um foco a menos de oposição, caiu do cavalo como se vê.

Se o governo apenas aplicasse os critérios que já existem na lei de concessão pública de TVs e Rádios provavelmente a maior parte da mídia não teria seus prazos de concessão prorrogados. Isso sem mexer em nada na lei. 


Mas obviamente, a mídia que é tão legalista quando trata de greves e ocupações de terra, veria a aplicação de fato do controle legal sobre a concessão pública como um "atentado à liberdade de imprensa".


Ora, a lei brasileira, certa ou errada, prevê controles, contrapartidas, exige imparcialidade, direito de resposta, presença de programação nacional, enfim uma série de itens que são solenemente ignorados em nome de uma "liberdade de imprensa", que para a mídia parace se situar acima da lei. E o governo que insinuar cumprir a lei será certamente taxado de "ditadura".


Seria o caso de sugerir então uma radicalização da liberdade de imprensa: que tal o fim das concessões de Rádio e TV e a liberdade total para que qualquer grupo pudesse trasmitir e disputar as frequências (supondo que fosse tecnicamente possível) de rádio e TV? Você poderia colocar seu programa na TV aberta em cima da frequência da Globo que tal essa liberdade de imprensa?


Nâo é preciso imaginar muito a reação da grande mídia, basta ver o chilique das grandes rádios diante das rádios comunitárias, que eles chamam de "piratas". Aí eles não gostam da liberdade de imprensa e reclamam que o Estado aplique rigoramente a lei. Dizem que derruba avião, criam "disque-cagueta" para forçar a Polícia Federal a agir; enfim, defendem seu "latifúndio midíático".


Se é assim, então paremos de hipocrisia. Ou se democratiza a mídia de verdade e aí sim podemos falar em liberdade de imprensa, ou isso é apenas discursinho politicamente correto dos latifundiários da mídia, que defendem a "sua" liberdade de expressão, que aliás está totalmente fora dos marcos legais atuais.


É provável que estejamos vivendo o início de uma "venezualização" da grande mídia. ABERT, ANJ e similares estão se colocando, explicitamente, como a "voz da oposição" para ocupar o lugar da direita tradicional falida. 

O que vimos até agora talvez seja pouco perto do que virá no mandato de Dilma. É muito provável que a atitude eleitoral da mídia esteja focada não apenas na eleição, mas numa estratégia de desgaste prévio da futura presidenta. Talvez apostando que, diferentemente de Lula, uma onda de denúncias possa ensejar um processo de impeacheament sem grande reação popular.


É uma perspectiva pálpavel a meu ver.














































 

24 de agosto de 2010

Pela bola sete

Aqui vai uma das boas crônicas do santista, jabaquarense e xisnoveano Plínio Marcos

O Bereco era do devagar. Não queria nada com o batente. Seu negócio era sinuca. E nisso ele era cobra. De taco na mão, fazia embaixada. Conhecia os trambiques do jogo e sabia como entrutar o parceiro. Então, estava sempre com a bufunfa em cima. Sabe como é o lance. Sempre tem um panaca pra desconhecer o nome do mandarim. E o Bereco ajudava. Se vestia como um Zé Mané qualquer. Neca de beca legal. Isso espanta o loque. O babado era se fazer de besta. Tirar onda de operário trouxa, desses que dão um duro do cacete de sol a sol, se forram de prato feito e na folga vão fazer marola em boteco.

Daí, sempre tem um malandrinho pra tomar os pixulés do otário. Se fazer passar por coió era o grande trambique do Bereco. Com essas e outras, ele engrupia até muito vagau escolado. Até no Bar Seleto de São Vicente, ponto certo dos grandes tacos do mundo, o Bereco deu esse deschavo. E grudou. Pensaram que ele era pão-ganho e ele tomou o sonante dos pinta. E assim o Bereco ia remando seu barco em maré mansa. Só ganhando. Um pato atrás do outro era depenado. Sem dó. Que, nas paqueras da vida, é cada um pra si. Até que um dia aconteceu um esquinapo. Era fim de mês. Dia de pagamento da Refinaria de Petróleo. O Bereco, que estava por dentro, se picou pro Cubatão. Se plantou num salão dos bordejos da refinaria e ficou na moita.

Logo foi baixando a freguesia. Tudo de capacete de lata. A patota estava contentona, de envelope no chorro. E o Bereco só espiando o lance. De vez em quando, tirava um paco de nota pra pagar uma Coca-Cola. Era a milonga. Logo, um capacete de lata mais afobado se assanhou com o dinheiro do majura. Sentiu a muquinha pega e quis tomar. Mediu o Bereco e foi no chaveco do pinta. O capacete de lata tinha um joguinho enganador. Desses que funcionam em mesa de sindicato. Mas levou fé em si e nenhuma no Bereco.

Encarnou no moço: — Como é, parceiro? Quer fazer um joguinho? O Bereco não deu pala: — Não jogo nada. O capacete de lata cercou: — A leite de pato. O Bereco deixou andar: — Se é brinquedo, vamos lá. E começou o jogo. O Bereco sentiu o parceiro e tirou de letra. O capacete não sabia nada. O Bereco deu o engano. Os primeiros dez mirréis, os segundos e os terceiros, o Bereco empurrou pro trouxa. E se fez de bronqueado. Partiu pros vinte, pros cinqüenta e pros cem mil. O capacete de lata estava se deitando. Era seu bilhete premiado. Com o dinheiro que ganhou do Bereco e o seu ordenado, já tinha um milheiro no porão. Daí, o Bereco selou: — Ou tudo ou nada.

O capacete de lata nem balançou: — Um milhão na caçapa. Todo mundo de botuca ligada na mesa. O capacete de lata saiu pela cinco. Errou. O Bereco se tocou que o xereta estava nervoso. Teve que maneirar. Cozinhar o galo. Senão, ia ficar escrachado o perereco. Errou na cinco, que estava cai, não cai. E o joguinho ficou de duas muquiranas. Só na bola da mesa. O Bereco não embocava. Só colhia as mancadas do capacete de lata. Se o bruto metia uma três, o Bereco fingia que era sem querer e deixava uma sinuca de bico pro inimigo. E na catimba do Bereco e no virador do capacete de lata, o jogo foi comprido paca. Os sapos nem chiavam. Seguravam as pontas.

Era tudo torcedor do capacete de lata. Trabalhadores da refinaria. Mas o Bereco nem estava aí. Já contava com o dinheiro da caçapa. Aí chegaram na bola sete. Só a sete estava na mesa. E o jogo estava por ela. O Bereco, folgado, muito à vontade, encostou a negra na parede. O capacete de lata tremia, suava. Estava com o motor batendo acelerado. Fez mira. Começou a pensar que tinha quatro filhos no seu chatô, aluguel de casa, rango, escola, remédio e os cambaus. Pensou no que ia dizer pra mulher. Com a cabeça cheia de minhocas, deu na cara da bola. Uma chapada. A negra rolou pra um lado, a branca, pra outro. O capacete de lata sentiu um alívio. Pelo menos acertou na bola.

Mas o recreio durou pouco. Quando as bolas pararam, a sete estava na boca da botija. Pedindo pra cair. E a branca, no meio da mesa. Ninguém, por mais cego que fosse, errava aquela bola. O Bereco sorriu. Deu a volta na mesa devagar. Bem devagarinho. Enrustido, sem dar bandeira, ia gozando as fuças dos otários. O capacete de lata só faltava abrir o bué. Deu a volta e ficou atrás da caçapa em que a bola ia cair. O Bereco deu uma dica de leve: — Vai secar? O capacete de lata quis falar, mas não deu. Se engasgou. O Bereco não se flagrou no olhar do panaca. Se tivesse visto as bolas de sangue nas botucas do capacete de lata, ia ficar cabreiro. Não viu e fez a presepada. Passou giz no taco, com calma. Se ajeitou na mesa, com calma. Aí, levantou a mira.

Viu a bola branca, a sete, a caçapa, atrás da caçapa um revólver quarenta e cinco e, atrás do revólver, o capacete de lata. O Bereco quis saber: — Que é isso, meu compadre? O capacete de lata espumou, babou e resmungou: — Se meter essa bola, eu te mato. O Bereco viu logo que era jura. Se fechou em copas. Deu na bola de esguelha, o taco espirrou. Raspou na sete e as duas ficaram na berba da caçapa. Coladas. O Bereco fingiu que não havia nada. Deu a treta: — Ficou pra você, compadre. O capacete de lata guardou o revólver, a raiva e tudo. Foi de cabeça. Deu no taco e bimba. A branca e a negra mergulharam juntas. O Bereco ficou só olhando. As lágrimas correram dos olhos do capacete de lata. Estava tão por baixo que não dava pra pegar a arma e aprontar o salseiro. Só deu um lamento: — Tenho quatro bacuris. O Bereco fez que não escutou.

Recolheu a grana e saiu de fininho. O capacete de lata saiu logo atrás. Ninguém se mexeu. Passou um tempo e veio o estouro. Meio mundo foi ver as rebarbas. No meio da rua, o capacete de lata estava estarrado. Tinha o revólver na mão e uma bala na orelha. Se acabou. O Bereco só teve pena de nunca mais poder dar grupo em trouxa do Cubatão. Perdeu um grande pesqueiro.

7 de agosto de 2010

Uma Brahma! Bem geladinha!


Ele não era mendigo e muito menos um dos bêbados e malucos que andavam pelo Saboó. Era um biscateiro como se dizia, vivia de bicos, ora consertando um encanamento, ora ajudando numa obra, sempre pegando um trabalho aqui e outro ali, sempre sem paradeiro profissional. A vida toda fora assim, preferia isso a ter emprego fixo, trabalhar todo dia, ter patrão ...

Pagava um preço por isso. E sabia muito bem disso. Ás vezes enchia o bolso numa semana e antes de chegar o domingo o dinheiro lhe escapava entre os dedos, juntar era raro, comprar algo para garantir o futuro mais ainda. Mas tinha sua casa, sem escritura, sem nenhum papel, mas todos sabiam que era dele e não havia conta de aluguel, luz ou água para pagar.

Apesar da pobreza nunca dispensou sua cerveja. Encostava no balcão e o braço já parecia acostumado àquele movimento de apoio, devia haver uma espécie de calo sob o braço do Xaíco, tal o número de vezes em que aquele movimento foi repetido. Sempre pedia Brahma, nunca marca inferior, nem superior. Acostumou-se a isso. E acrescentava ao dono do boteco: - Bem geladinha! e devolvia bravo se estivesse mais ou menos.

Vivia assim desde moleque. Estava com 43. Sem mulher, sem saber direito onde viviam os 4 filhos que fizera pelo mundo. O trabalho já não aparecia como antes. Anos atrás chegava a fugir dele, mentia dizendo que tinha pego outros serviços e passava dias até semana toda curtindo praia vez por outra. Mas agora a coisa era outra, o trabalho já não aparecia e ele não tinha muito ânimo de procurá-lo, nunca teve e já estava velho demais para mudar, era o que dizia.

Sem trabalho comia um dia na casa de um, outro dia na casa de outro. Não tinha gastos. Mas faltava o da cerveja. Mas... – Dinheiro... dinheiro não tem ... era o que costumava dizer.

Luizito como sempre fez parava nos botecos, encostava no balcão e com a mesma naturalidade de sempre pedia – Uma Brahma! Sempre acrescentando ... Bem geladinha!

A Brahma vinha, bem geladinha, ele bebia o primeiro gole com aquele prazer que somente os bons bebedores conhecem, aquele prazer do primeiro gole em dia de calor. Bebia uma, às vezes duas ou três, mas não passava disso. Depois saia caminhando devagar.

Não pagava mais.

Das primeiras vezes os donos de boteco da área pensaram que era simples esquecimento, mas não gostaram nem um pouco. E a coisa seguiu. Xaíco chegava e falava – Uma Brahma! Bem geladinha!
A Brahma chegava, ele bebia e ia saindo, sem mais nem menos, nem pedia prá pendeurar, como se beber umas cervejas fosse uma espécie de direito inerente ao ser humano, devia constar na Declaração Universal dos Direitos do Homem...

Os donos de boteco da área começaram a se enfezar - E aí Xaíco! Não vai pagar? Ele olhava e respondia tranqüilamente – Dinheiro não tem...e saía caminhando no seu passo de sempre. Um ou outro perguntava se ele queria pendurar, mas Xaíco só respondia – Não adianta porque... dinheiro não tem...

Isso seguiu por cerca 4 meses. Xaíco revezava os botecos. Cada dia num diferente, mas não deixava de ir a cada um do bairro pelo menos uma vez na semana e continuava pedindo – Uma Brahma! Bem geladinha!

Um dia Xaíco sumiu. Acharam o corpo dele peneirado por 11 balas de uma pistola. Diz a lenda que antes de morrer não suplicou, não correu e nem prometeu pagar. Pediu que o deixasse realizar seu último desejo – Uma Brahma! Bem geladinha! E avisou antes desta vez - Dinheiro não tem ...

O sensível homem que iria realizar o serviço esperou pacientemente que ele bebesse toda a garrafa. Depois conferiu a arma, destravou e soltou azeitona. Saiu tranquilo, pensando no que iria receber e e na Brahma – bem geladinha! - que iria tomar, ali perto mesmo, mas para ele agora – Dinheiro tem sim...

Dizem que quando o corpo de Xaíco chegou no IML, logo ali no Saboó, atrás da favela do Pantanal, um dos empregados gritou - Chegou mais um presunto! Outro, que conhecia o Xaíco respondeu: - Bem geladinho? E os dois caíram na gargalhada.

OBS: Essa história quem me contou foi um grande camarada, morador da área, que assim como Xaíco, encerrou expediente na terra.

21 de julho de 2010

Pensando com a bílis ou Sugestão de mensagem para o CVV...

sem tempo para escrever Sicilio Rocco posta algo para brincar, não se matem crianças...

Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...


Fernando Pessoa, ou melhor, Álvaro de Campos, esse é o cara!

12 de julho de 2010

Povo bom é o povo morto!


A classe média vive distante do povo: geograficamente, economicamente, profissionalmente, ideologicamente.

Não quer dizer que não tenha contato com o povo, pelo contrário, ela pode morar perto, ter um nível de renda não muito distante e estar no mesmo ramo de atuação (em outra posição logicamente...), mas o fato é que existe uma distância, percebida pelo nas roupas, na fala, no tipo de assunto, cor de pele e outros coisas mais ou menos sutis.

A distância faz do povo um desconhecido para a classe média e na “ausência” do povo real surgem idealizações mil sobre quem seria essa entidade: “o povo”. A imaginação da classe média sobre o povo é marcada pelo distanciamento e certo remorso de classe, pois no fundo a classe média sabe que vive bem às custas do povo. Além disso, existe sempre um sentimento de superioridade por parte da classe média.

A classe média é um bicho esquizofrênico, com a mente bipartida, metade esquerda, metade direita. São partes que se encontram dentro de cada indivíduo da classe média; às vezes uma predomina, às vezes outra, na maioria das vezes ambas convivem contraditoriamente dentro da pessoa.

O lado direito é mais simples. Discriminação, humilhações, desprezo total pela cultura popular, subestimação da inteligência alheia, pena de morte para os pobres mal comportados e um pouco de caridade pode resumir a atitude desse lado. Para o lado direito o povo é uma “classe perigosa”, os “feios, sujos e malvados”.

O lado esquerdo é mais complexo, me interessa mais. Nele o remorso de classe é consciente e impulsiona atitudes mais benevolentes para com o povo, ele procura focar nos aspectos positivos e luta contra os “preconceitos” do lado direito. O lado esquerdo é “cidadão”, socialista muitas vezes, embora sejam, sempre, classe média.

Nessa relação classe média / povo, um aspecto chama muito minha atenção: a música; até porque a música é tida e havida como elemento definidor da nossa brasilidade.

O lado esquerdo da classe média venera a música popular. Mas como a classe média é distante do povo real ela venera a idéia de música popular que ela mesma construiu. E como a idéia de povo do lado esquerdo é muito boa, a música popular legítima só pode ser muito boa, deve ser muito boa.

Mas há um grande problema. Quando a classe média olha a música que o povo faz e ouve ela não gosta da maioria das coisas: o forró do “cãozinho dos teclados”, o Calipso, o pagode da periferia e o funk dos bailes são absolutamente abomináveis para a classe média! A classe média condena tudo neles, da musicalidade às letras, da dança ao jeito de se vestir.

Certamente isso não representa todo o gosto musical do povo brasileiro mas devemos reconhecer a expressiva a “popularidade” desses ritmos, independente do gosto musical e do juízo de valor de cada um de nós. E isso é um problema tremendo para a classe média, pois ela idealizou em seu “lado esquerdo” um povo “legítimo” “raiz”, bem distante das perversões do funk, do calipso e do pagode. Eis que então aparece uma solução mágica! Essas “perversões musicais” passam a ser encaradas como “imposições da mídia” e da indústria musical que corromperiam a pureza da verdadeira cultura popular. Assim, de uma tacada só, o povo é inocentado (sujeito inerte...) de culpa por essas músicas repugnantes e a burguesia insaciável é culpada por desgraçar a cultura popular.

Eis que surge então, como um super-herói para salvar o povo, o lado esquerdo da classe média! Sim, essa classe média assumirá a missão histórica de ensinar ao povo qual é a verdadeira cultura popular! Afinal, essa cultura “raiz”, a única cultura popular legítima, precisa ser “resgatada” e devolvida ao povo; e assim, a classe média ataca de Adoniram contra o Só prá contrariar, Luis Gonzaga contra Frank Aguiar, Toni Tornado contra a Gaiola das Popozudas. Desnecessário (ou necessário?) dizer o quão arrogante é essa postura professoral da classe média, postura de classe dominante.

Se repararmos bem, foi a classe média quem inventou a Música Popular Brasileira, M.P.B., uma sigla, uma marca que carimba o que é digno ou não de ser chamado de popular. O engraçado é que os autores eram (e são ainda!) quase sempre da classe média, o público é quase sempre da classe média, os lugares onde se apresentam de classe média. Seria a música popular? Mesmo sem músicos e ouvintes do povo?  Eles insistem em se chamar de Música Popular Brasileira! Ao menos a musicalidade é legitimamente popular? Pode ter certa inspiração na raiz popular, mas é algo um tanto diferente.

Lembro dos relatos de Zé Ketti e Cartola sobre os primeiros contatos com gente da Bossa Nova. Longas viagens de ônibus, o estranhamento com a zona sul do Rio, Tom Jobim e Vinicius mandando algum funcionário comprar cachaça e cerveja: só bebiam whisky, tocavam jazz americano e queriam misturar um pouco de samba na coisa. Relato exemplar que explica um pouco essa coisa que virou a “M.P.B.”, um rótulo que serve de barricada contra as perversões populares que insistem em se reproduzir contrariando os cânones do que deve ser o popular.

É curioso como quase tudo que a classe média admira na cultura popular pertence ao passado, já repararam nisso? São sempre culturas, tradições e músicas do passado, quase extintas, que se tornaram objeto de curiosidade, de estudo.

Talvez exista algum estudo (e se não há é uma boa sugestão) sobre a atitude da classe média com a música popular nas diferentes épocas. Pelo que sei a classe média sempre repudiou a cultura popular que era contemporânea, e sempre passou a admirá-la depois de morta, “empalhada” e devidamente absorvida tempos depois.

Os comentários da classe média sobre o samba nas primeiras décadas do século invariavelmente condenavam a “malícia” e a “sensualidade”. “Formosa”, palavra que ouvimos em vários sambas do passado, hoje parece uma termo até requintado. O passado tem esse poder de envernizar de requinte uma palavra que “traduzida” para hoje seria algo como - Gostosa. Enfim, há uma infinidade de sambas e forrós que deveriam soar tão sexualmente agressivos aos ouvidos puristas daquela época como alguns funks de hoje em dia que chocam o lado esquerdo da nossa classe média, tão ciosa das tradições. Seriam eles neo-reacionários? Dá o que pensar...

Um dos resultados da cultura popular da classe média é a existência de diversos barzinhos e botecos que tocam o que se considera a legítima música popular, inventaram a algum tempo o termo “samba de raiz”, termo que não diz nada sobre o estilo de samba, apenas que é “de raiz”, “das antigas”. O curioso é que nesses lugares o povo real comparece quase sempre minoria ou como músico. O preço é meio salgado, enfim, o lugar ´”é de bacana”, embora toque a verdadeira música popular, a tal “de raiz”, para a classe média obviamente.

O problema do lado esquerdo da classe média é que seu ideal de povo não pode ser maculado, o povo deve ser bom. É como se ele tivesse medo de reprovar algo no povo e suscitar seu lado direito, reacionário.

Simbolicamente a classe média mata boa parte do povo real, que gosta de “podreiras”, esse povo não tem direito à cultura, tudo para que o povo ideal seja puro, seja raiz, um povo imaginário que a classe média produz para ela mesma cultue esses valores e se sinta menos burguesa.

A parte direita da classe média quer a pena de morte, quer o zé povinho que ousou roubar e sair de seu lugar morto. A parte esquerda da classe média exige do povo uma “cultura popular” que não existe mais, que só existe num povo do passado, morto e enterrado.

É como se dissessem: - Tirem daqui essa música pervertida e massificada pela mídia! Eu quero o povo morto e ideal, o povo legitimamente popular! Eu tenho medo e nojo desse povo real, degradado pelo funk, pelo pagode, pelo forró! Se esse for o povo, talvez o lado direito esteja certo, ele é mesmo deplorável...

Ironicamente uma sentença pode unir estas duas partes da esquizofrênica classe média: “povo bom é povo morto!”

PS: A idéia do texto é refletir sobre o tema, pessoalmente gosto tanto de coisas que podem ser enquadradas como "raiz" - sem precisar de justificativas ideológicas - e de coisas que podem ser enquadradas como "podreiras" - sem a menor vergonha na cara.

6 de julho de 2010

Desabafo de um político corrupto


O PETARDO publica uma carta aberta recebida de um deputado federal que se diz cansado de acusações injustas.

Carta aberta aos eleitores hipócritas

Sou deputado federal e ando cansado de acusações injustas por parte da sociedade, ainda mais em ano eleitoral quando a mídia repercute mais essas queixas infundadas.

Não agüento mais o discurso de que roubamos, somos corruptos parasitas, vivemos às custas da sociedade, pensamos apenas em nossos interesses privados e não temos preocupação pública.

Por isso resolvi escrever e desabafar, mesmo correndo risco de ser um político “impoliticamente correto”. Faço isso porque sou um político consciente, ao contrário da maioria de meus correligionários.

Não pense que vim aqui me defender ou desmentir nenhuma acusação: vim é acusar e revelar a hipocrisia da sociedade.

Estranho para você? Me acompanhe e entenderá.

Eu, como a maioria, nasci e fui criado numa sociedade capitalista, competitiva e que preza muito a realização do indivíduo. Logicamente todo indivíduo nessa sociedade precisa de dinheiro para realizar seus desejos e se tornar uma pessoa mais feliz. Foi pensando nisso meus pais me educaram, e agiram para que minha formação educacional e moral me habilitasse a conseguir dinheiro na sociedade.

Com certeza eu ouvi ensinamentos sobre a ética, a honestidade, a cidadania, o espírito público e coisas do gênero. Mas sempre me garantiram que meus interesses privados de alguma forma gerariam benefícios públicos. E assim, concentrei-me apenas nos meus interesses, em ganhar dinheiro da forma mais fácil e rendosa possível, pois esse seria o passaporte para a felicidade. Sou um típico individualista, como muitos nessa sociedade.

Eu poderia tentar ganhar dinheiro de várias formas; poderia ter sido comerciante, industrial, especulador, banqueiro, ladrão de banco, traficante, alto funcionário público concursado, publicitário, jogador de futebol ou artista. Poderia até mesmo ser um simples trabalhador bem sucedido. É um grande leque de possibilidades e cada um de nós escolhe o caminho que lhe parece melhor para trilhar. Eu escolhi a política, simplesmente porque oferecia boa remuneração e não exigia trabalho árduo. Além disso eu tenho vocação para o ramo.

Até aí nada me diferencia de você. Fui tão ambicioso quanto qualquer outro. Se eu tivesse talento com a bola talvez fosse jogador, mas não tenho e só me diferencia do jogador o caminho em busca do dinheiro que proporciona uma vida melhor.

Ocorre que a profissão de político tem uma particularidade. Tecnicamente ela parece ser uma profissão a mais, com os deveres a cumprir que toda profissão implica. Mas na verdade ela é bem diferente.

Eu existo porque você delega a gestão da sociedade para alguns membros remunerados. Se essa delegação feita num passado tão longínquo foi pacífica ou forçada pouco me importa. O fato é que a sociedade manteve essa delegação até hoje e nada indica que irá alterá-la.

Você está tão preocupado com seus problemas individuais, com sua vida particular que não sobra tempo para pensar e agir nas questões coletivas, sociais. Você se acostumou a isso, se especializou tanto em certas tarefas que debater e decidir sobre questões como saúde, educação, orçamento, transporte, entre outros é uma grande chateação. Afinal, ter preocupações coletivas é uma contradição absurda numa sociedade individualista. Por isso você terceirizou o social e me paga bem para cuidar dele.

Pois bem, é desse estado de coisas que eu vivo e enriqueço. Você que não participa de nada, que não toma parte em nada, no máximo resmunga, e só tem coragem no mundo virtual. É você mesmo que cede o espaço que eu ocupo, é você que me entrega o imposto que eu ganho como salário (razoável até...) e que me entrega a verba que eu desvio também...

Você já parou para pensar nos absurdos que diz sobre mim? Você, que como eu nasceu e se educou numa sociedade individualista, pretende que eu me preocupe com problemas coletivos? Quantas vezes você fez isso na sua vida? Você participa de algum movimento, seja no bairro, no trabalho, na escola? Eu sei que não, você só reclama, você não troca sua vidinha confortável, embora explorada, por nenhum sacrifício em causas coletivas, você nem acredita mais nelas na verdade.

O máximo que você faz é ir a algum ato de vez em quando (se for...), reclamar no bar, escrever algo na internet sem se arriscar. Mas participar de algo regularmente não, arriscar sua liberdade não, arriscar sua medíocre profissão não, arriscar seu cotidiano tranqüilo não. Por isso eu existo!

Falar mal dos políticos! Muitos vivem dessa catarse social. Jornalistas, acadêmicos e artistas até ganham a vida com isso. Os ouvintes e leitores sentem-se vingados. E todos juntos seguem sem nada fazer. Hipocritamente dizem que a crítica pode ser um começo para ação! Sabem que não, que quase sempre é tudo catarse, é mudar no discurso o que não se pode mudar na prática.

A crítica da política é um cachorro correndo atrás do rabo. A sociedade sabe o que os políticos fazem, mas é mais fácil trocá-los do que participar. É mais fácil se iludir sonhando com políticos honestos e corajosos do que reconhecer que quase nada mudará pela própria política. É preciso ser hipócrita porque a verdade doída é que o comodismo da sociedade nos referenda, nós os políticos. É como se a sociedade toda, submersa na corrupção do individualismo exigisse desesperadamente que os políticos fossem uma espécie de elite de integridade e preocupação pública. Como se pudesse emergir pureza da lama.

A política espelha a má consciência da sociedade. É isso que incomoda: a corrupção da política reflete uma sociedade em que cada se preocupa apenas com seus interesses. A perversidade invisível dos roubos do mercado torna-se visível com a política. A verdade é que a sociedade não quer se ver representada na política, imagina que a política corrompe a sociedade quando ela na verdade apenas traduz uma realidade.

Quando a sociedade insiste em negar que a política seja sua imagem refletida, ela reafirma as mesmas formas da política atual. A cada quatro anos acalenta o sonho de que trocando pessoas tudo poderá mudar. Depois vem a síndrome do corno, como se a traição dos políticos eleitos não fosse o resultado óbvio, como se o traído não contribuísse para a traição.

Mas isso tem sua razão. Insistir no sonho e na traição é a solução mais cômoda para quem está tão pré-ocupado com sua própria vida que não tem outra solução a não ser delegar e esquecer.

Quando você me condena, em nome do interesse público, você reclama o seu interesse individual: seu poste de luz, seu asfalto, seu ônibus, seu remédio; pois o seu “interesse público” é seu, e essa bela palavra só serve para você afirmar seu interesse individual.

Veja como somos parecidos! Eu me elejo em nome do interesse público e você reclama em nome do interesse público, mas nós dois, estamos buscando somente o nosso interesse individual.

Eu na verdade sirvo a você! Eu, político, permito que você, que é omisso e inerte, deposite sobre mim a culpa pelas mazelas e siga sem nada fazer. Eu permito que você siga sua vidinha de merda e pense que cumpriu sua obrigação cidadã teclando numa urna a cada 2 anos. Eu existo para que você possa aliviar sua consciência.

Eu me exponho na berlinda, humilhado publicamente como supra-sumo da sujeira para que você se sinta limpo. Que preço isso tem? E você espera que eu não cobre por isso?
Você entregou o galinheiro à raposa! Não condene minha fome.

Eu não deveria escrever essa carta, deveria deixá-lo feliz com seus resmungos de comadre fofoqueira que nada faz. Para mim seria mais cômodo, eu aqui, ganhando bem legalmente e ilegalmente, você aí, se fudendo e resmungando.

Mas com essa carta eu ponho fim à hipocrisia. E você? Vai reagir hipocritamente, seguir me criticando e sonhar com um novo eleito? Ou vai se calar, cuidar da sua vida e parar de encher o saco? Uma coisa me parece certa: você não será capaz de fazer nada.

3 de julho de 2010

DOIS LOGROS DO EDUQUÊS: O «APRENDER A APRENDER» E AS «COMPETÊNCIAS»

 Sicilio Rocco não pretende ficar reiventando a roda e posando de original. Então publico abaixo um texto que apareceu no blog do português Francisco Trindade "Anovis Anophelis" sobre o vazio de algumas "pedagogias" da moda.

1. Ensina-se, supostamente, a «aprender a aprender». Mas não se ensinam os conhecimentos que os alunos precisam de aprender. Ensina-se, supostamente, a «aprender a aprender» matemática. Mas o que é preciso mesmo é aprender matemática.

O «aprender a aprender» tornou-se moda por soar bem e prometer o «milagre» de se poder aprender tudo sem ter de se aprender nada.

O eduquês substitui o que importa ensinar pelas técnicas e métodos que supostamente permitiriam aprender tudo sem esforço.

Dois exemplos reveladores do logro:

Se eu pretender recrutar um tradutor de inglês, não indagarei se os candidatos sabem «aprender a aprender», mas se sabem, pelo menos, inglês e português.

Se a Carris precisar de um motorista, não perguntará aos candidatos se sabem «aprender a aprender», mas se têm carta de condução e experiência de conduzir.

2. As «competências» são outro logro, que engana o incauto porque a expressão tem um significado próprio que o senso comum instantaneamente apreende e valoriza. Mas o que é um indivíduo competente? Alguém que adquiriu e domina conhecimentos e técnicas e é capaz de os aplicar no exercício eficaz de uma função. Haverá alguém competente, seja no que for, sem conhecimentos?

O que será uma competência em Filosofia Medieval? Só pode ser o conhecimento do pensamento dos filósofos da época e do contexto em que foi elaborado. O que exige tê-los estudado, dominar o latim, grego, história, etc. E ser competente em física quântica? E a cozinhar uma boa caldeirada?

Também o candidato a um curso universitário de Física deverá ter adquirido os conhecimentos que permitem responder à exigência de aprofundamento e especialização que pressupõe. Não chegará que saiba «aprender a aprender», pede-se-lhe que já tenha aprendido muito.

3. Importante não é o modo como se ensina e aprende, mas o que efectivamente se ensina, aprende e exercita. E é só o aprender muito que potencia a capacidade para aprender mais e diferente.

O método é um «caminho». As técnicas e meios de ensino devem ser adoptados e mesmo construídos em função das matérias e dos alunos. A pedagogia é uma disciplina respeitável, mas auxiliar, não é o objectivo do ensino.

4. Ora, como a pedagogia parece ser o único conhecimento que os «especialistas» da educação supostamente dominam, valorizam-no até ao rídiculo, garantindo, assim, o poder e o emprego.

É esse o programa dominante na maioria dos cursos de formação de professores, que lançam no ensino vagas de docentes, grande parte sem poderem ensinar nada, por saberem muito pouco do que deveriam ensinar.

Mas como o Ministério da Educação é controlado pelos mesmos que os «formaram», fica tudo em casa, isto é, a escola e a «avaliação» não podem deixar de ser o que, com raras excepções, são.

Se o leitor quiser saber até que ponto o rei vai nú, peça a um desses novos docentes, ou a um dos pobres bons professores a quem é imposta a cartilha, um exemplo de uma «competência». Aposto que será: a «leitura de um horário de comboio»…

Refeito do choque, pergunte, a seguir, como se avalia a competência em História, Física, Electricidade…

4. O «aprender a aprender» e as «competências» são um pico da pedagogice, logros que servem ao eduquês e aos «especialistas» para que não se ensine, não se aprenda, nada possa ser avaliado.

São , afinal, manifestação da desvalorização relativista do conhecimento e do professor, da aversão rousseauniana aos «saberes letrados», supostamente origem da desigualdade e da desarmonia social. Tornar todos iguais, é o projecto inconfessável do eduquês. Mesmo que para isso seja preciso condenar todos à ignorância, à boçalidade e à miséria.

Todos?

Texto de Guilherme Valente saído no "Expresso" de hoje


http://franciscotrindade.blogspot.com/2010/07/dois-logros-do-eduques-o-aprender.html#links

28 de junho de 2010

Che Guevara recebe o Madureira, primeiro time do mundo a jogar bola em Cuba depois da revolução

Clique no link para ler a curiosa reportagem da revista TRIP

Che recepciona, da esq. para a dir., Alfredo, Alfredinho, Che, Odir, o empresário Zé da Gama e Homero